3.2. Signos e Clichês

   Voltando à linguagem da televisão, os esquemas básicos mencionados pelo autor são compostos por duas divisões: os signos e os clichês:
   O signo atua em dois lados: na cabeça do receptor e no produto de comunicação que o receptor vê, pois o produto é realizado por pessoas que também elaboram os pensamentos como signos. A produção sígnica só tem efeito se realiza essa dualidade de forma plena
(FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 45)

   Ou seja, o signo vai agir na pessoa que o está percebendo e no produto que o está passando. São os dois lados da transmissão.
   Essa divisão é feita no processo de extração do signo da sociedade.
   De certa forma, é como o estereótipo, que já está presente e é apenas maquiado para ser usado na televisão. No caso do signo, ele também está presente na sociedade, no entanto, ele não vai ser necessariamente maquiado. O que vai acontecer é que será extraído de uma situação real elementos que possam ser usados para uma produção da Indústria Cultural, de uma forma aceitável, que seja digerida sem maiores transtornos.
   Um exemplo usado pelo autor Ciro Marcondes Filho são as cerimônias culturais de índios da Amazônia, onde os costumes devem ser cuidadosamente analisados, pois:
   Para serem „consumidos‟ pelo telespectador junto com sua cerveja, seu salgadinho, seu cigarro, precisarão ser neutralizados e generalizados: a fábrica de produtos de comunicação (a emissora de TV, no caso) extrai do produto suas aberrações, seus elementos chocantes, suas peculiaridades, seus termos regionais – entendidos só em seu local de origem -, deixando-o „simplificado‟, compreensível para todos, facilmente assimilável
(FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 31)

   No exemplo citado, as cerimônias culturais de índios da Amazônia são um produto cultural e o que dele é extraído para ser utilizado na televisão é o que pode ser chamado de mercadoria cultural.
   Partindo desse exemplo, fica mais claro mostrar que o signo na cabeça do receptor age como um mecanismo de defesa, pois ele se firma na necessidade que as pessoas tem de negar a realidade, de camuflar o que a desagrada e evitar os conflitos encontrados na sociedade.
   Já o signo no produto de comunicação visto pelo telespectador são essas peças extraídas de alguma situação social para que tal situação seja simplificada e se torne aceitável, enquadrando-se ao que a massa pode compreender e ao que a indústria quer mostrar à massa.
   Usando outro exemplo de Ciro Marcondes Filho, temos um “automóvel velho ou batido que vai para o desmanche. Lá ele é desmontado, e as peças são reunidas separadamente” (FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 45).
   Essas peças são a mercadoria cultural, são os signos.
   Em Show de Truman, essa extração dos signos ocorre em situações mais corriqueiras e menos extremadas. Eles não foram tirados de rituais indígenas, por exemplo, mas sim da vida cotidiana dos telespectadores.
   Elementos como romance, medo, profissão, amizade foram extraídos da sociedade de uma maneira adaptável ao público do show.
   Truman relacionou-se desde a faculdade com a mulher que viria a ser sua esposa. Lidou com medos e traumas, com questões profissionais e, para enfrentar tudo isso, contou sempre com seu melhor amigo e companheiro de conversas e cervejas.
   Tais elementos estão presentes na vida de qualquer pessoa, muitas vezes de forma até cruel. No show, foi extraído disso apenas o que poderia ser mercadoria cultural.
   As dificuldades que o diretor Christof o impôs (sempre propositadamente) durante praticamente os 30 anos de existência de Truman, não foram nada que o público não pudesse tomar como exemplo para si ou não suportasse ver.
   O signo se torna, portanto, uma estrutura vazia, pois ele é retirado de sua situação de origem e recebe uma nova roupagem, despida de maiores dificuldades e livre de negativismo. “É uma representação neutralizada de ações (elas seriam terríveis de outra maneira) e um encaixe perfeito para a necessidade humana de distanciar-se dessas ações” (FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 47).
   A segunda divisão dos esquemas básicos da linguagem televisiva é formada pelos clichês.
   Os clichês traçam um paradoxo com os signos. Enquanto estes últimos tem a finalidade de camuflar o que o telespectador pode vir a sentir, os primeiros devem justamente canalizar os sentimentos, potencializá-los:
   No clichê, a emoção que havia sido congelada pelo signo é novamente aquecida. Cativa-se o receptor, embalando-o em sonhos, transportando-o para outros mundos de felicidade ou desgraça, bem longe da vida real. Quando a volta à vida real ameaça acontecer surgem soluções radicais e decisivas: felicidade muito forte e esquemática, destruição formal, esperanças irreais. São fantasias que mantêm os telespectadores no mundo das normas, dos valores e das duras realidades. Antes que o sonho invada a vida do receptor, tirando-lhe a paz, a estrutura da fantasia-clichê o abate e o neutraliza.
(FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 49)

   É uma forma sobrecarregada de trazer emoções extremadas ao telespectador, que estava absorto no conforto levado pelos signos e desperta num brusco momento de felicidade ou tristeza, através de uma situação mostrada que chega a ser surreal.
   É como se forçasse o telespectador a acordar da neutralidade dos signos, saindo de uma ilusão tênue, para uma situação forte, mas que não chega a ser necessariamente menos ilusória.
   Em Show de Truman, o pricipal clichê é representado pela cena em que seu pai retorna. Kirk Burbank, vivido pelo ator Brian Delate, havia desaparecido em um acidente de barco, durante um passeio com Truman, quando o protagonista tinha apenas sete anos.
   A situação foi provocada tanto em prol da conquista de audiência, quanto pra causar um trauma em Truman, que sonhava em ser explorador. A cidade de Seahaven é uma ilha; de forma que, se Truman temesse água, seria um empecilho a mais para ele deixar a cidade e, consequentemente, o programa.
   Os planos do diretor deram certo: Truman Burbank passou a ter pavor de água. No entando, o ator que vivia seu pai ficou desapontado por ter sido retirado da história e, anos mais tarde, começou a aparecer misteriosamente no cenário, provocando confusões mentais em Truman e contribuindo para que ele se aproximasse da verdadeira face de sua história.
   Numa tentativa de continuar ludibriando Truman, o diretor Christof resolve trazer de volta seu pai, com a justificativa de que ele havia perdido a memória no acidente.
   Para acalmar Truman e criar um ambiente para a chegada de seu pai, seu melhor amigo, Marlon, o leva para o lugar onde costumam tomar umas cervejas e conversar e tenta amolecer seu coração e convencê-lo de que nada de estranho está acontecendo, através do diálogo a seguir, ditado pelo diretor no ponto eletrônico do ouvido de Marlon, praticamente por inteiro:



   Truman: não sei o que pensar. Marlon. Talvez esteja enlouquecendo, mas... Parece que o mundo gira ao meu redor.
   Marlon: é muito mundo para um homem só, Truman. Não acha que é um desejo seu? Aquele desejo de ter realizado mais na vida? Ora, Truman, quem não se sentou no banheiro e teve uma entrevista imaginária no jornal das 8h? quem não quis ser alguém?
   Truman: isto é diferente. Parece que estão todos envolvidos.
   Marlon: sou seu amigo desde os sete anos, Truman. Só passamos pela escola colando um do outro nas provas. Puxa! Eram idênticas. Mas sempre me senti seguro sabendo que seja qual fosse a resposta, acertaríamos juntos...
   Truman: ou erraríamos juntos.
   Marlon: Lembra daquela vez que passei a noite acampando com você porque você quis brincar de “Pólo Norte”? Peguei pneumonia? Lembra?
   Truman: faltou na escola o mês inteiro.
   Marlon: você é como se fosse meu irmão, Truman. Sei que as coisas para nós não se realizaram da maneira como sonhamos. Conheço o sentimento de parecer que perde o controle e você não quer acreditar, aí você busca as respostas em outra parte, mas eu queria explicar que eu me meteria na frente de um ônibus por você. E a última coisa que faria é mentir pra você. Pense um pouco, Truman. Se todos estão envolvidos, eu estou também. Não estou metido nisso, porque “isso” não existe. Mas você tinha razão sobre uma coisa.
   Truman: o que?
   Marlon: o que começou tudo isso.
   Então os dois olham pra trás, e o pai de Truman aparece, em meio a um nevoeiro e andando devagar ao encontro do filho.
   Esse diálogo que antecedeu o clímax (que é a volta do pai) é um exemplo de como pode ser explorada a emoção em uma cena que consuma o telespectador.
   “Isso é clichê: símbolos tradicionais de amor, de família feliz, de prosperidade. As pessoas que assistem a essas cenas identificam-se imediatamente com elas” (FILHO, Ciro Marcondes, 1996, p. 48). E amizade, claro, é um dos símbolos tradicionais de amor, portanto, o diálogo entre os amigos já é um exemplo de clichê.
   Vale ressaltar que, no diálogo citado anteriormente, a amizade apenas abre caminho para outro símbolo, que é o valor familiar.
   A continuação da descrição da sequência, mostra claramente o domínio que a Indústria Cultural exerce sobre o telespectador, onde o diretor é o poder extremo, controlando as emoções tanto de Truman - mais uma vez enganado - quanto de quem assiste, que se envolve sempre com mais profundidade na história do personagem.
   Marlon encerra sua participação com frases decisivas: “eu o encontrei pra você, Truman. Por isso vim aqui hoje. Ele tem muito o que contar.”
   O amigo segura o ombro de Truman num sinal de apoio e sugere: “vá até ele.”
   Truman começa a caminhar em direção ao suposto pai e o show de controle da Indústria Cultural começa a ser mostrado claramente, através do diretor Christofer, que
comanda tudo numa ilha de edição, com cortes ao vivo, instruindo a quantidade de neblina e que câmeras devem ser usadas.
   Truman se aproxima do pai e diz: eu nunca deixei de acreditar.
   Christofer: abra. Câmera oito lateral.
   Kirk, chorando, diz: meu filho. E o abraça.
   Assitente: damos um close-up?
   Christofer: não, não. Fique atrás. Música. Agora dê o close-up.
   Kirk: todos esses anos desperdiçados. Vou compensar. Eu juro.
   Christofer comanda o volume da música, como um maestro, enquanto a imagem aproxima-se cada vez mais do rosto emocionado de Truman, que diz: pai. E os produtores todos comemoram, enquanto o mundo se emociona e vai às lágrimas junto com o personagem.
   Uma amostra clara de como funciona o domínio exercido pela Indústria Cultural no telespectador, que funciona como uma marionete, envolvido num clichê, exatamente da forma como pretendia e planejou o diretor do show.
   Pessoas pelo mundo todo se abraçam e comemoram por Truman o momento de reencontro em sua vida, mesmo sabendo que na verdade ele só está sendo mais uma vez enganado. Que o momento de felicidade pelo qual está passando não é real.
   Dominados pela indústria cultural, os telespectadores ignoram o fato de que Truman é uma pessoa presa numa história falsa por trinta anos, que tem o direito de saber a verdade. As pessoas estão tão envolvidas com o entretenimento, com aquele personagem presente em suas casas 24 horas por dia, que perdem a percepção da realidade, se deixando dominar completamente.
   Esse controle, assim como a ausência de capacidade crítica das pessoas submetidas às mensagens dos meios de comunicação, são as principais características da indústria cultural. E é exatamente esse sistema de controle que “condiciona, evidentemente, de uma forma total, o tipo e a função do processo de consumo e a sua qualidade” (WOLF, 2002, p. 85). Ela envolve emocionalmente as pessoas não só como telespectadores, mas como consumidores também, que consomem não só a chamada mercadoria cultural, mas consomem igualmente o que é vendido através dela.

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